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Eliminação de casas de taipa e regularização fundiária

 Direito à propriedade e moradia da teoria à práxis

A discussão acadêmica, no seu estilo mal disfarçado de timidez, quase sempre guarda em si a arrogância e a tibieza. Destarte, no campo do Direito à Moradia, da sua consecução com um dos postulados da Dignidade Humana, são muitos os discursos. Alguns abrangem os aspectos físicos e as condições de salubridade das habitações. Outros se prendem ao déficit ou à falta de moradia.

Acontece que a maioria dos discursos temáticos sobre o Direito à Moradia não têm o condão ou a eficácia de interferir na realidade, padecem de esterilidade da práxis, isto é, são conteúdos que possuem profundo embasamento teórico, contudo, dado a ausência de ousadia, de articulação com a prática não passam de elucubrações teóricas para embates acadêmicos.

As opções humanas, sejam elas dos indivíduos, de categorias ou de classes sempre se dão constrangidas por conteúdos ideológicos e pelas condições histórico-sociais. Assim o é em todos os ramos do Direito e não menos no concernente ao Direito à Moradia, quanto a sua efetivação além de mero Princípio ou Preceito constitucional.

Fato é que a Constituição Federal dá a todos o direito à moradia, para uma vida digna. Mas o que se percebe é que a maioria das pessoas, especialmente nos segmentos mais pobres, apresenta problemas com a questão habitacional. Os problemas com a moradia vão muito além da especulação imobiliária, do uso da propriedade urbana com reserva de valor. O problema passa, muitas vezes pela expropriação do Estado pelos detentores da propriedade e a prevalência ou a preponderância do interesse privado sobre o interesse púbico.

Inequivocamente, a segregação sócioespacial, a reclusão das populações pobres nos espaços das favelas ou nas periferias das cidades, acondicionados em cubículos insalubres, construídos de madeira e zinco ou em casas de taipa, tal condição está ligada à especulação imobiliária.

O principal instrumento para a aplicação da função social da propriedade seria o Plano Diretor, obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes. Ocorre que em razão da inação dos movimentos sociais, somado ao sequestro do aparelho estatal municipal pelo poder econômico o Plano Diretor funciona como garante para assegurar o domínio das áreas urbanas para fins de exploração econômica, destinando as populações mais pobres as bordas e entornos das cidade e moradias que conspurcam com qualquer pretensão de prevalência de Dignidade Humana, moradias tais com as casas de taipa, o supra sumo da realidade expressionista das paisagens urbanas e da não efetividade dos direitos sociais.

Em Sergipe, felizmente, com a cobrança da população, a pressão da sociedade que se vê como sujeito de direitos e agentes das mudanças, o Ente federativo Estadual se voltou para a efetivação do Direito à Moradia Digna. As ações do Estado, sua preocupação com a afirmação da primazia da Constituição, dos direitos nela postos, sobre os interesses econômicos dos especuladores do espaço urbano, transbordou para além do âmbito da propagandística eleitoral. Assim, em parceria com a Defensoria Pública do Estado de Sergipe, por seus Núcleos de Defesa de Direitos Humanos e Promoção da Inclusão Social e de Articulação com Movimentos de Bairros, adotou politica pioneira de enfrentamento de moradias indignas e insalubres, promovendo a eliminação de casas de taipa e procedendo a regularização fundiária dessas moradias mediante a usucapião, com a outorga do Direito à Propriedade.

Note-se que faz sentido a adequação das casas de taipa à construçõesem alvenaria. Afinaltodo é qualquer investimento em melhoria das condições sanitárias e de saneamento das moradias populares, especialmente das casas de taipa, têm um sentido social, uma vez que com a eliminação das casas de taipa não se está extinguindo a tradição poética das casas de pau a pique ou o barroco das casas simples sustentado por cercas de madeira e barro, mas sim se eliminando o habitat de animais peçonhentos, a exemplo dos barbeiros, das aranhas e de escorpiões.

Os moradores de casas de taipa, não obstante a poesia expressionista do viver em simplicidade, desafiando os valores da sociedade consumista e complexa, ao residirem nas casas de pau a pique são as principais vítimas dos animais peçonhentos e engrossam as estatísticas dos portadores da Doença de Chagas. Assim, a eliminação das casas de taipa e efetivação da propriedade através da Usucapião além da efetivação de um dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, o direito à moradia; se revela, por outro lado, em vertente de combate a endemias e efetivação do Direito à Saúde a Segurança.

Urge, portanto, evitar que o crescimento econômico não represente apenas crescimento dos fatores econômicos, sem tangenciar o desenvolvimento econômico-social, notadamente no tocante a função social da terra, a fim de que o princípio não seja destronado em favor do princípio da livre iniciativa, em razão do domínio das áreas urbanas de especuladores. Para que assim ocorra se faz necessário que as elucubrações teóricas de Direito à Moradia e Direito Urbanístico estejam articuladas com a práxis, isto é, com a ousadia do fazer, do ir além da simples judicialização das questões para encampar e incorporar as ações e reivindicações dos movimentos sociais que reivindicam a apropriação democrática do espaço urbano, apontando no sentido do Desenvolvimento Social e não apenas do crescimento econômico.

O crescimento econômico, conforme se pode verificar da realidade atual, pode coexistir com a miséria e com precárias condições de vida e moradia. A inexistência de moradias dignas, a permanência de casas de taipas, habitat ou hospedarias de barbeiros, o inseto transmissor da Doença de Chagas é prova cabal de que crescimento econômico não é o mesmo que desenvolvimento econômico-social, bem como que avançadas Legislações e a existência de tratados e teóricos do Direito à Moradia se traduzem em efetivação do Direito posto e a subversão das condições de moradia precárias, promiscuas e indignas em condições de moradia digna.

A Constituição Federal no seu artigo 182 determina que a política de desenvolvimento urbano, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, deve ser executada pelo Município, tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Nada obstante a existência da norma, as nossas cidades ainda se ressentem da sua efetividade, haja vista a tresloucada especulação e o poder municipal elegendo como prioridade administrar para a garantia dos direitos dos mais ricos.

Apesar das limitações decorrentes do olhar telúrico da maioria dos operadores do direito acerca da questão, o Código Civil de 2002, através do instituto da usucapião instituiu um meio eficaz hábil para proporcionar a maior dinâmica do uso da terra, para a democratização da sua propriedade, uma vez que a propriedade, no sistema econômico capitalista, é uma parte fundamental ao indivíduo, necessária ao pleno desenvolvimento da solidariedade no âmbito das cidades e garantia do bem-estar de seus habitantes; porquanto, a sua função social é instrumento assecuratório de vida digna, da afirmação do homem como um ser integral.

Assim, apreendendo ou partindo de tais postulados, a Defensoria Pública do Estado de Sergipe, por seus Núcleos de Defesa de Direitos Humanos e Promoção da Inclusão Social e de Articulação com Movimentos de Bairros, manejando o instituto civilista da Usucapião no sentido de efetivação do Direito à Propriedade e Moradia Digna de moradores de diversos municípios do Estado de Sergipe, num total de 210 famílias, foi além da teoria, adotando a práxis da efetivação de Direitos que vão além do formalismo jurídico e ultrapassam as fronteiras do crescimento econômico para assegurar dignidade e afirmar a cidadania.

A usucapião extraordinária como definida no artigo 1.238 do Código Civil:

Artigo 1.238, CC: Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

A forma de usucapião extraordinário foi uma das manejadas haja vista que nos casos os moradores das casas de taipas, possuidores ao logo tempo de modo ininterrupto, ou seja, contínua e sem oposição, incontestada, tranqüila, mansa e pacífica, sendo de conhecimento público e notório. Uma vez que, consubstanciando-se a prescrição aquisitiva de quinze anos, prevista no artigo 1238 do CPC, consuma-se o usucapião.

Na efetivação da regularização fundiária ou efetivação do direito à propriedade de moradores de mais de 20 municípios do Estado de Sergipe, num total de 210 famílias, nas hipóteses em que não cabia a usucapião extraordinária, foi manejado a usucapião especial constitucional, na forma como preceitua o artigo 1.240 do Código Civil de 2002:

Artigo 1240: Aquele que possuir, como sua, área urbana de ate duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Esta forma de usucapião foi manejada haja vista as casas de taipa estarem situadas em sítios urbanos, as áreas usucapiendas se restringirem a no máximo duzentos e cinqüenta metros quadrados e, ainda, os usucapientes ou possuidores utilizarem a área para sua moradia ou de seus familiares, além de não serem proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

Poder-se-ia, ainda, manejar o instituto da Usucapião Administrativa, prevista no texto Lei 11.977/2009, haja vista perfeitamente cabível na regularização fundiária das áreas de possuidores de taipa, uma vez que a espécie não estabelece qualquer forma coercitiva de transferência patrimonial, na medida em que preserva o percurso judicial sempre que houver disputa entre possuidores e proprietários.

No entanto, embora a usucapião administrativa represente um auspicioso instrumento no sentido da desburocratização do setor urbanístico, podendo ser uma ferramenta importante para a regularização fundiária, dado a ser precoce ou adventício poderia ensejar desconfianças quanto a segurança da validade da outorga de propriedade nos até então possuidores, razão porque não foi manejado.

A experiência dos Núcleos de Defesa de Direitos Humanos e Promoção da Inclusão Social e de Articulação com Movimentos de Bairros da Defensoria Pública do Estado de Sergipe, em cooperação com a Secretária Estadual de Desenvolvimento Urbano, na tarefa enfrentar e retificar situações de moradias precárias, insalubres, que expõem seus moradores à situação de vulnerabilidade sanitária, conjugadas com medidas de regularização fundiária através do manejo do instituto da Usucapião demonstra que a efetivação de Direitos muitas vezes não pode divorciar-se da práxis da ação social, pode contribuir para que os discursos temáticos sobre o Direito à Moradia tenham a eficácia de interferir na realidade, não da esterilidade da práxis ou de o serem tão somente discussões pedantes ou bizantinas.

Destarte, a ousadia da práxis é um desafio para os operadores do Direito, um convite ao compartilhamento das ações dos movimentos sociais a fim de que o Direito à Moradia Digna e a democratização da propriedade, bem como todos os demais Direitos Humanos não sejam meros preceitos encartados nas Constituições dos Estados, institutos formais de teorias jurídicas.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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Constituição Federal, Código Civil… / Vade Mecum [organização Editoria Jurídica da Editora Manole]. — Barueri, SP: Manole, 2011.

 

AUTOR: Miguel dos Santos Cerqueira – Defensor Público da Defensoria Pública do Estado de Sergipe, Coordenador do Núcleo de Defesa de Direitos Humanos, e-mail: migueladvocate@folha.com.br