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À Autoridade

À Autoridade

 

 

Para Cazuzinha Cipó, Santo André dos Brejos estava se achando. Do punhado de casas em semicírculo e uma igreja no meio, nasceram mais cinco ruas, uma delas tocando nos pertences do que antes fora o engenho dos Monteiros. O suposto progresso reclamava à presença de uma autoridade, tal a vila das Cacimbas que já tinha um padre com paróquia e tudo.

 

Com muita luta, no vai e vem da burocracia, surgem os auspícios do deputado Chico de Ló, pessedista de costado, apadrinhado de um certo senador da situação que, num deslinde de fazer inveja aos udenistas do lugar,  despachou para Santo André uma autoridade de farda, mas sem divisa.

 

Agapito da Conceição Maia, oriundo das bandas de Alagoas, devoto de Nossa Senhora do Carmo, trazia sempre preso ao pescoço um escapulário encardido que, de tão usado, a santa perdera a cor.  Dele, sabia-se apenas que se unira ao grupo de voluntários no combate à Lampião em Água Branca. De lá, nenhuma notícia do seu paradeiro. Conta-se que, anos depois, veio a aparecer na fazenda de Pedro Ernesto de Porto da Folha, em terras do Sergipe. Mais tarde, pelas mãos do próprio patrão, assentou praça na polícia. No quartel, não lhe fora dada tanta atribuição por conta do puxá, padecimento que carregava desde o tempo de menino.

 

Foi o Coronel Rosário que despachou Agapito para os ermos de Santo de André. Como prêmio, recebeu fardamento novo, coturnos engraxados de cadarços, porém com um número superior ao permitido pelos seus pés. Para consolidar a sua autoridade, recebeu, numa caixa de papelão, uma bandeira do Brasil desbotada que seria hasteada na porta da cadeia.

 

Agapito Maia, pouco usava o patronímico da mãe; Conceição era nome de mulher, não condizente a um militar de garbo, conhecido pelo seu atrevimento e pela sua macheza. Como autoridade do governo, não era de levar desaforo para casa. Poderia, agora, prender, soltar, meter o dedo no nariz dos poderosos do lugar, principalmente quando em seus ombros reluziam três divisas negras, colocadas por sua conta e risco, sem que elas pudessem interferir no magro soldo que recebia como soldado raso. Orgulhava-se do avô paterno; Berrnabé Maia, herói de Belo Monte, defensor intransigente do beato Conselheiro. Entre os seus feitos, ajudou a empalar, num galho seco de angico, o corpo do Coronel Tamarindo.

 

Santo André dos Brejos recebeu Agapito numa manhã sonolenta e quente.  Ali entrou arrotando valentia. Na sua empáfia, ordenou a retirada das grades da cadeia, justificando-se:“cabra que ele prendesse, não seria capaz de esboçar qualquer fuga”. Limpou a velha escrivaninha, em seguida, na camarinha, pendurou a rede numa escápula espetada no caixilho da porta. Na frente da cadeia hasteou, no mastro da platibanda, a bandeira surrada. Prestou-lhe continência como um grande soldado. Ensaiou alguns versos do hino Nacional, vindo logo a interrompê-lo, obviamente por ignorá-lo. Na tentativa de assobiar a melodia, desafinou, pondo a culpa no puxá.

 

Nas primeiras semanas, nada havia faltado a Agapito. Era uma macaxeira dali, uma cabeça de inhame dacolá, um punhado de fava verde para acompanhar  o  capão  cevado no quintal da cadeia. Mas o certo é que o tempo foi passando e nada acontecia em Santo André dos Brejos, nenhuma briguinha, nenhum furto de galinha. Até os filhos de Zé Guaxinim, antes arruaceiros, agora se amolengaram.  Não saiam de casa, eram só na rede, imprestáveis, com as pernas inchadas, as  feições esverdeadas, empapuçados que nem um  sapo cururu. Triste de Agapito não fosse o canário belga, dado por Dona Felicidade como prova de boas vindas. Ele havia se afeiçoado ao bichinho, passava horas na tentativa de imitar o seu canto.

 

O tempo corria e a autoridade de Agapito minguava. Relaxara no hasteamento da bandeira. Passava as tardes estendido numa preguiçosa que ficava na porta da frente.  Com a braguilha aberta deixava escapar pelo cós da calça a ceroula encardida. Maldizia-se daquela paz, nunca havia visto tamanha lerdeza como  daquela  gente. Nem no dia da feira havia uma briguinha de bêbado. Para qualquer ocorrência, seria capaz, inclusive, de emprestar uma peixeira para algum doido enfiar no bucho de um inocente. Aí sim, prenderia o cabra e mostraria a sustança da sua autoridade. Até pensou em proibir as cabras de Nhô Cindino pastarem no largo da igreja, deixando ali somente a molecada que jogava futebol com uma bola de meia. Mas isso era coisa de pouca valia. Autoridade de costado era aquela que prendia, que trazia o inditoso pelas fuças.

 

Agapito sentia-se só, faltava-lhe uma companheira. Enrabichou-se por Ana Barbada, assim chamada pelos tufos de cabelos concentrados na ponta do queixo. Rendeira de ofício, elogiada pela habilidade dos seus dedos no manuseio dos bilros sobre a almofada, plantada na soleira da porta.

 

Ana Barbada era mãe solteira, arranjou bucho no Lagarto; dizem que foi coisa de um tal Ernon Carvalho, famoso dançador de mambo, cuja notoriedade se deu por conta dos seus sapatos do bico mole que lhe permitiam verdadeiros corrupios pelos salões de baile. O certo é que o menino nasceu com a cara do pai. O desalmado para não assumir a paternidade, bandeou-se para as terras do Maranhão sem dar qualquer notícia.

 

O namoro prometia, Agapito livre e desimpedido; Ana, embora mãe solteira, não tinha compromisso com homem, somente com Vadinho, uma criança sem opinião formada. Agapito só não se conformava era com aquele lenço de Ana grudado ao queixo. O romance não durou muito. No quinto encontro, na casa de Ana, um fato lamentável viria a ocorrer: Vadinho entra em casa e, num pulo só, se depara com a mãe enroscada nos braços de Agapito, sem entender tudo aquilo, saiu a gritar pelo largo da praça:

 

– Tem um home matando mainha! Tem um home matando mainha!.

 

Agapito, desesperado, correu pelo fundo da casa. Areado com a escuridão da noite, terminou caindo no quintal lamacento de Dona Felicidade. Arfando, chegou à cadeia velha. Na agonia, deixou para trás um dos coturnos. No dia seguinte ele já servia de bola à molecada do largo da igreja. Alquebrado, Agapito contentou-se em ter um dos pés calçado com uma alpercata de rabicho.

 

Na tarde seguinte, uma comissão liderada por Dona Felicidade compareceu à cadeia velha. Ali foi exigida a imediata providencia da autoridade, para que ela descobrisse e prendesse o inditoso elemento que ousou pular a cerca do seu quintal. Além de despudoradamente denegrir a honra da pudica artesã Ana Barbada.

 

Agapito avermelhou, sua voz embargou, o puxá, repentinamente, fê-lo cansado, tentou esconder o pé desprovido do coturno, mas  Dona Felicidade já o havia notado.

 

Setenta e duas horas fora o prazo dado para Agapito deslindar o fato. Mal esgotado o tempo na mesma montaria que o trouxe a Santo André dos Brejos, na calada da noite, a autoridade tomou rumo ignorado. Como lembrança, deixou a túnica surrada presa a escápula da camarinha sem as divisas de sargento. FIM.

 

Joaquim Prata Souza

Defensor público e membro da Academia Lagartense de Letras.